Hermes: O Trapaceiro Divino, Guardião das Fronteiras e Guia das Almas
- Fridrik Leifr

- 19 de nov.
- 10 min de leitura

Entre todos os deuses do Olimpo, nenhum é tão onipresente, tão versátil e tão fundamental para o funcionamento do cosmos quanto Hermes. Enquanto Zeus governa dos céus com seus raios e Hades reina nas profundezas silenciosas, Hermes é o único que tem livre passagem e cidadania em todos os domínios: o céu, a terra e o submundo. Ele é o Mensageiro dos Deuses, sim, mas reduzir Hermes a um simples entregador de recados divinos é ignorar a vastidão e a complexidade do seu poder.
Hermes é o deus das fronteiras e, paradoxalmente, da transgressão dessas mesmas fronteiras. Ele é o patrono dos viajantes que buscam novos horizontes, dos comerciantes que trocam riquezas, dos ladrões que operam nas sombras, dos atletas que buscam a excelência física e dos oradores que moldam a realidade com a eloquência. Ele é o senhor da "zona cinzenta", o espaço onde as coisas mudam, se trocam e se transformam.
Ele é o arquétipo do Trickster (o Trapaceiro), a força de inteligência rápida e astúcia que desafia a ordem estabelecida não para destruí-la, mas para renová-la. Ele é o inventor da lira, do fogo (pela fricção), dos números e do alfabeto. Mas seu papel mais sagrado e misterioso é o de Psicopompo: o guia das almas. É Hermes quem segura a mão dos recém-falecidos e os conduz com segurança da luz ofuscante da vida para a escuridão desconhecida do Hades. Ele é o deus da conexão, a "internet" do mundo antigo, garantindo que a comunicação flua entre deuses e mortais, vivos e mortos.
Neste artigo, faremos uma jornada completa pela vida agitada deste deus incansável. Desde suas travessuras no berço que enganaram o próprio Apolo, até seu papel vital na Odisseia e na Guerra de Troia. Vamos explorar sua descendência selvagem (como o deus Pan), entender a profunda polaridade entre ele e a deusa Héstia, e descobrir como a energia de Hermes — rápida, mental e adaptável — é a chave para navegar o caos do mundo moderno.
O Nascimento do Prodígio: O Primeiro Dia de Hermes
A maioria dos bebês, divinos ou mortais, passa seus primeiros dias dormindo, chorando e dependendo inteiramente da mãe. Hermes, no entanto, nasceu com um plano e uma ambição. Filho de Zeus e de Maia (a mais velha, bela e tímida das Plêiades), ele nasceu numa caverna isolada no Monte Cilene, na Arcádia, longe dos olhos ciumentos de Hera, a esposa de Zeus.
O "Hino Homérico a Hermes", uma das fontes mais antigas e deliciosas sobre o deus, conta que ele nasceu ao amanhecer. Ao meio-dia, já estava tocando a lira. À noite, já tinha roubado o gado de Apolo. Ele não perdeu tempo em estabelecer sua divindade não pela força bruta, mas pela engenhosidade pura.
A Invenção da Lira e a Arte da Troca
Poucas horas após o nascimento, o bebê Hermes escapou do berço e saiu da caverna. Do lado de fora, encontrou uma tartaruga pastando. Qualquer outra criança veria apenas um animal lento, mas a mente de Hermes viu um potencial oculto. Rindo, ele disse à tartaruga que ela seria mais útil morta do que viva (uma demonstração precoce de seu pragmatismo por vezes cruel).
Ele levou o animal para dentro, limpou o casco e, usando tripas de ovelha como cordas e dois chifres de antílope como braços, construiu a primeira lira. Ele tocou o instrumento e, instantaneamente, criou a música e a poesia lírica, cantando sobre o amor de seus pais, Zeus e Maia. Este ato define Hermes: a capacidade de pegar algo mundano e lento (uma tartaruga) e transformá-lo em algo divino e rápido (o som e a música).

O Grande Roubo do Gado Solar
Mas a música não saciou sua fome de aventura e reconhecimento. Sentindo fome de carne, Hermes partiu para a Piéria, onde pastavam os rebanhos sagrados e imortais de seu meio-irmão, Apolo. Com uma astúcia sobrenatural, ele separou cinquenta vacas do rebanho.
Aqui, a genialidade do Trickster se revela. Para não ser rastreado, ele fez as vacas andarem de costas, invertendo as pegadas, de modo que parecesse que elas estavam indo em direção ao pasto, e não saindo dele. Ele mesmo calçou sandálias enormes e estranhas, feitas de galhos e folhas, para que suas pegadas não parecessem humanas nem divinas, mas sim de algum monstro gigante.
Ele escondeu o gado numa caverna perto do rio Alfeu. Lá, ele inventou o fogo por fricção (usando gravetos de loureiro) e sacrificou duas das vacas aos doze deuses do Olimpo. A audácia aqui é suprema: ele dividiu a carne em doze porções, incluindo-se como o décimo segundo olímpico antes mesmo de ser reconhecido como tal. Depois de comer, voltou para o berço no Monte Cilene, passando pela fechadura como uma névoa de outono, e enrolou-se nos panos como um bebê inocente.
O Julgamento e a Reconciliação
Apolo, o deus da profecia, eventualmente descobriu o roubo (com a ajuda de um velho informante e observando o voo dos pássaros de agouro). Furioso, ele voou até a caverna de Maia e confrontou o bebê. Hermes negou tudo, jurando pelo trono de Zeus e fazendo "olhos de cachorrinho pidão", argumentando que um recém-nascido não poderia saber o que eram vacas, muito menos roubá-las.
Apolo, não convencido mas impressionado com a mentira descarada, arrastou o bebê Hermes até o Olimpo para ser julgado pelo pai, Zeus. Diante do Rei dos Deuses, Hermes fez sua defesa com tanta eloquência, charme e humor que Zeus riu alto da audácia do seu filho. Zeus, orgulhoso da inteligência do menino, ordenou que Hermes devolvesse o gado, mas não o puniu.
A reconciliação é o ponto chave. Ao chegarem onde as vacas estavam escondidas, Hermes pegou sua lira e começou a tocar. Apolo, o deus da música, ficou hipnotizado. Ele nunca tinha ouvido um som tão belo e complexo. Encantado, Apolo ofereceu a Hermes uma troca: as vacas roubadas (e o domínio sobre os pastores) em troca da lira. Hermes aceitou imediatamente (o deus do comércio fazendo seu primeiro negócio). Apolo ficou tão feliz que deu a Hermes também um caduceu dourado (o bastão dos pastores) e o dom da profecia menor. Assim, o ladrão e a vítima tornaram-se os melhores amigos do Olimpo, selando uma aliança entre a inspiração artística (Apolo) e a astúcia prática (Hermes).
Os Domínios de Hermes: O Deus das Muitas Faces
Hermes é uma divindade complexa porque seus domínios abrangem tudo o que envolve movimento, troca e transição.
O Mensageiro Divino: Como mensageiro pessoal de Zeus, Hermes viaja com a velocidade do pensamento graças às suas sandálias aladas (Talaria). Ele não apenas entrega mensagens; ele as interpreta e traduz. Daí vem a palavra "Hermenêutica" (a arte da interpretação). Ele é o deus da eloquência, da retórica e da persuasão — ferramentas que podem ser usadas para revelar a verdade ou para enganar habilmente.
O Deus do Comércio e dos Ladrões: Hermes rege todas as trocas. Seja uma troca honesta no mercado ou uma troca desonesta num beco escuro, Hermes está presente. Ele é o patrono dos comerciantes, garantindo lucro e viagem segura, mas também dos ladrões e trapaceiros, admirando a astúcia necessária para subverter as regras e obter vantagem.
O Senhor das Estradas e Viajantes: Na Grécia antiga, pilhas de pedras chamadas Herma eram colocadas em encruzilhadas e fronteiras. Eram marcos simples, muitas vezes com a cabeça de Hermes no topo e um falo ereto na frente (símbolo de potência e proteção). Viajantes adicionavam uma pedra à pilha para pedir sorte. Ele protege quem está longe de casa e quem cruza fronteiras, sejam físicas, culturais ou linguísticas.
O Deus dos Atletas: Hermes era adorado nos ginásios e estádios. Sua velocidade e destreza física faziam dele o patrono das corridas, do pugilismo e da luta. Ele representa o corpo ágil e a mente rápida trabalhando em uníssono, a inteligência tática aplicada ao esporte.

O Psicopompo: O Amigo na Escuridão
Talvez sua função mais solene e importante seja a de Psicopompo ("condutor de almas"). Hermes é o único olímpico (além de Dionísio, em circunstâncias especiais) que pode entrar e sair do Hades livremente e sem sofrer danos.
Quando um mortal morre, é Hermes quem aparece. Ele não julga, não pune e não causa a morte (essa é a função de Tânatos). Hermes é o guia. Ele segura a mão da alma, conforta-a na sua confusão inicial e a guia através dos caminhos escuros até às margens do rio Estige, onde a entrega ao barqueiro Caronte.
Esse papel torna Hermes o deus dos "espaços liminares" — os limiares entre um estado e outro. Ele está presente no nascimento, na iniciação e na morte. Ele é o deus que garante que não nos percamos nas transições da vida.
Héstia e Hermes: O Fogo e a Estrada
Para entender profundamente Hermes, precisamos olhar para a sua contraparte divina: Héstia, a deusa da lareira, do lar e do fogo sagrado.
Na Grécia antiga, o espaço doméstico e a própria estrutura da sociedade eram definidos pela polaridade entre Héstia e Hermes.
Héstia representava o Centro, o imóvel, o interior, o feminino, a segurança do lar, o fogo que nunca se move.
Hermes representava a Periferia, o movimento, o exterior, o masculino, a aventura, a porta e a estrada.
Eles eram frequentemente invocados juntos. Héstia mantinha o lar seguro e aquecido para que Hermes pudesse sair, viajar, negociar e depois ter um lugar para onde voltar. Um não existe sem o outro: sem Héstia, Hermes é um vagabundo sem raízes; sem Hermes, Héstia é uma prisioneira isolada. Essa dupla ensina a importância do equilíbrio entre a segurança (ficar) e a exploração (ir).
Os Amores e a Descendência Selvagem
Hermes, sendo um deus de vitalidade e conexão, teve muitos amores, tanto com ninfas quanto com mortais, gerando uma prole que reflete sua natureza selvagem e fértil.
Pai de Pan
Seu filho mais famoso é Pan, o deus com pernas e chifres de bode, senhor da natureza selvagem, dos pastores e do pânico. Pan é a manifestação do aspecto mais terreno e animal de Hermes. Diz-se que quando Hermes apresentou o bebê Pan (que nasceu com barba e chifres) aos deuses no Olimpo, todos riram de alegria, especialmente Dionísio. Pan herdou de seu pai a música (a flauta de pã) e a sexualidade desenfreada.
Hermafrodito
De sua união com a deusa do amor, Afrodite, nasceu Hermafrodito. O jovem era de uma beleza extraordinária. Uma ninfa chamada Salmacis apaixonou-se tão perdidamente por ele que, ao abraçá-lo, orou aos deuses para que nunca fossem separados. Os deuses atenderam ao pedido literalmente, fundindo seus corpos num só, criando um ser que possuía ambos os sexos. Este mito reflete a natureza de Hermes como um deus que une opostos e transcende a dualidade de gênero.

História: O Escândalo das Hermas
A importância de Hermes para os gregos antigos era tamanha que um ato de vandalismo contra suas estátuas quase destruiu Atenas. Em 415 a.C., na véspera de uma grande expedição naval para a Sicília durante a Guerra do Peloponeso, os atenienses acordaram e descobriram que quase todas as estátuas de Herma (os pilares com a cabeça de Hermes e o falo) da cidade tinham sido mutiladas e castradas durante a noite.
Isso não foi visto apenas como vandalismo, mas como um presságio terrível de que o deus das viagens havia retirado sua proteção. O pânico instaurou-se. A população temeu que fosse um sinal de uma conspiração oligárquica para derrubar a democracia. Isso levou a uma caça às bruxas política, resultando na condenação e exílio do famoso general Alcibíades. Este evento histórico mostra como a figura de Hermes estava intrinsecamente ligada à segurança do Estado, à democracia (pela liberdade de palavra) e à proteção divina nas empreitadas militares e comerciais.
Associações Mágicas e Naturais
Para o praticante moderno, trabalhar com Hermes é convidar o movimento, a adaptação e a solução rápida de problemas para a sua vida.
Símbolos:
Caduceu: O bastão da autoridade, negociação e equilíbrio (duas cobras, cura e veneno).
Talaria: As sandálias aladas, representando a capacidade de transcender o plano físico.
Petasos: O chapéu de viajante, símbolo de proteção nas jornadas.
Bolsa de Dinheiro: Símbolo de comércio e prosperidade.
O Número 4: Sagrado para Hermes, representando as direções e a estabilidade material.
Animais:
Tartaruga: Símbolo de sua invenção da lira e da paciência escondida sob a rapidez.
Galo: O arauto do novo dia, símbolo de vigilância.
Carneiro: Como o "Bom Pastor" (Criophorus), Hermes carrega o rebanho.
Lebre: Velocidade, fertilidade e astúcia.
Plantas e Ervas:
Lavanda e Menta: Ervas mercuriais, ligadas à comunicação rápida e clareza.
Amendoeira e Aveleira: A madeira do Caduceu é frequentemente associada à aveleira, árvore da sabedoria.
Moly: A erva mítica que ele deu a Odisseu para anular a magia de Circe.
Pedras e Cristais:
Ágata: Especialmente ágata de renda azul, para eloquência e viagens.
Citrino: Para sucesso no comércio e intelecto afiado.
Ouro: Como metal de troca e valor.
Dia da Semana: Quarta-feira (Dia de Mercúrio/Hermes).
Hermes na Cultura Pop
Como o deus mais "ocupado", comunicativo e adaptável, Hermes é uma figura constante na mídia moderna, muitas vezes retratado com humor e velocidade, servindo como o arquétipo do jovem mensageiro.
Percy Jackson (Série e Livros): Talvez a representação mais famosa para a nova geração. Hermes é mostrado de forma complexa: um pai preocupado (de Luke Castellan), um deus que gere um sistema de entregas expresso ("Hermes Express") e que usa tênis de corrida modernos e um smartphone que se transforma em Caduceu. Ele captura perfeitamente a essência de Hermes como o deus da tecnologia e da comunicação instantânea.
Hércules (Disney): Um Hermes azul, voando super-rápido com óculos de aviador, retratado como o alívio cômico e o mensageiro tagarela. Embora visualmente diferente, captura a personalidade sagaz, a velocidade e a função de "fofoqueiro" divino do deus.
Lore Olympus: Nesta webcomic popular, Hermes é um personagem carismático, atlético e vermelho, um amigo leal de Perséfone e um deus que transita facilmente (e burocraticamente) entre o mundo corporativo do Olimpo e o submundo, mostrando seu lado psicopompo de forma moderna.
Jogo "Hades" (Supergiant Games): Aqui, Hermes é o deus da velocidade. Ele é retratado como jovial, prestativo e incrivelmente rápido, oferecendo bênçãos que aumentam a velocidade e a esquiva do jogador. Seu design é fiel às raízes gregas, com um toque moderno e atlético, sempre com pressa para entregar a próxima mensagem.
DC Comics (Flash): O super-herói Flash é a encarnação moderna e literal do arquétipo de Hermes. O capacete do Flash original (Jay Garrick) é, sem tirar nem pôr, um Petasos de Hermes, e seus vilões (como o Trapaceiro e o Mestre dos Espelhos) refletem aspectos distorcidos do deus.

Conclusão: O Deus que Abre Caminhos
Hermes é o deus que nos diz que não precisamos ficar parados. Num mundo que muitas vezes parece rígido e cheio de destinos imutáveis, ele é a variável, o improviso, o golpe de sorte. Ele nos ensina que a inteligência pode vencer a força, que a palavra certa na hora certa pode abrir qualquer porta e que as fronteiras — entre países, entre pessoas ou entre a vida e a morte — não são barreiras intransponíveis, mas sim pontos de passagem e transformação.
Para o pagão moderno, Hermes é o aliado perfeito para o dia a dia. Ele está no e-mail que enviamos, na viagem que planejamos, no negócio que fechamos e na intuição súbita que resolve um problema antigo. Ele está na encruzilhada onde temos de tomar uma decisão e na estrada que escolhemos seguir. Honrar Hermes é manter a mente ágil, o corpo ativo e o coração aberto para o inesperado. É aceitar que a vida é uma jornada, e que ter um guia com um bom senso de humor e um mapa estelar torna a viagem muito mais interessante. Que Hermes calce suas sandálias douradas e guie seus passos na direção da sua própria lenda.




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